sexta-feira, 25 de maio de 2012

A Era do Narcisismo no Futebol Brasileiro

Qual a graça em se comemorar um gol sozinho? Falta comunicação.
Uma experiência sempre muito prazerosa é a de zapear pelos canais de TV e se deparar com  o inconfundível dourado da seleção canarinho de 70. Ainda que vistas à exaustão, aquelas imagens possuem um magnetismo sempre irresistível. 

Era o programa “Caros Amigos”, apresentado pelo Galvão Bueno, no Sportv, que mostrava algumas jogadas do Tri por conta de dois convidados ilustres: Carlos Alberto Torres e Clodoaldo. Ambos faziam comentários sobre os lances daquela Copa à medida em que estes eram exibidos no telão do estúdio. 


Em um desses lances, contra o Uruguai, o Capita fez uma revelação tão interessante quanto importante a respeito do gol de empate.

- “Foi o Gerson quem me chamou, dizendo que era para mandar o Clodoaldo avançar porque ele ia “ficar” para reter a marcação. Não deu outra”.

De fato, como bem lembrou Carlos Alberto, o técnico uruguaio já havia se dado conta que Gerson era o cérebro da equipe, e não o Pelé; o Rei era o cara que simplesmente ia lá e resolvia. Mas o sujeito que pensava e articulava as jogadas era o Canhota, pontuou.

Naquela tarde de sol, porém, los frijoles ya se fritavan en Guadalajara, mas Gerson não estava conseguindo jogar devido à forte marcação uruguaia – certamente mais eficiente que a habitual por conta da autoconfiança uruguaia advinda do maracanazzo. Foi esta dificuldade em comandar a meia-cancha que o obrigou a fazer uma releitura da partida e cantar ao  lateral a senha de acesso ao gol do empate salvador, sem o qual o Brasil dificilmente teria os nervos no lugar para conseguir deslanchar e virar o jogo no segundo-tempo.

No lance do gol, anotado justamente por Codoaldo, já para além dos quarenta e cinco minutos iniciais, vê-se claramente o vaticínio do Canhotinha: este apenas caminha pelo círculo central, evitando participar da ação, enquanto Clodoaldo, com cara de novo-no-pedaço, recebe de Everaldo e avança pela meia-esquerda, tabelando com Tostão e concluindo com maestria sua enfiada em diagonal, sem sequer precisar ajeitar a passada para soltar a patada contra a retaguarda celeste atordoada, enfim vazada.

O gol deu início a uma virada com gosto de vingança, mas que sobretudo pôs fim às dúvidas quanto à capacidade do Brasil em se impor emocionalmente ante os históricos rivais sul-americanos, sepultando o trauma de suposta "frouxura" que marcou alguns cracks do scratch de 50. 


Mas, além de vitoriosa, brilhante e, agora, corajosa, aquela seleção ficou marcada também por encaixar, no jogo coletivo, a qualidade individual pertencente a cada uma de nossas feras. Os caras realmente pareciam se completar em campo.

A importância e o interesse desse relato, no entanto, dá-se menos por sua curiosidade histórica, tão afeita aos aficionados, que por  uma implícita alusão a uma tendência social contemporânea que eu julgo danosa ao futebol. 


Refiro-me ao crescente protagonismo de atletas emocionalmente despreparados para assumir suas responsabilidades, como faz qualquer cidadão comum, e que ainda assim servem como exemplos aos milhares de fãs que o soccer-business produz. Na maioria dos casos, o jogador de futebol brasileiro – mesmo os que atuam em centros supostamente mais ricos e desenvolvidos - carece de educação familiar e formal, não podendo espelhar seu comportamento em nada muito além daquilo que a fútil realidade cotidiana de “pseudo-celebridade” lhe enseja.

É sabido que os hábitos extra-campo das principais estrelas em atividade, no Brasil, passam ao largo de instrução, leituras diárias de jornais, participação em saraus, discussões políticas e afins. Quando muito, resvalam, no máximo, numa faculdade de Educação Física feita nas coxas. Casos como os de Tostão, Afonsinho e Sócrates – coincidentemente, todos inteligentes, formados em Medicina e boas-gentes – são raros.

Nesse contexto ignaro, cito a obra de Christopher Lasch (1932-94), historiador norte-americano que fez publicar "A Cultura do Narcisismo" (em 1979), um valioso trabalho acadêmico no qual ele identificava o traço narcísico de nossa era: carência, adolescência tardia, incapacidade de assumir a paternidade ou maternidade e pavor do envelhecimento; enfim, uma alma infantil num corpo de adulto.

Lembrei-me do velho Lasch quando, ao final de sua explanação, o capitão do Tri afirmou que aquele gol só aconteceu porque, ao contrário de agora, havia uma boa comunicação em campo: - “Os jogadores, hoje em dia, não conversam mais. Ninguém fala nada!”, concluiu.

Também nessa maré, lendo um ótimo artigo de Luiz Pondé, na Folha de São Paulo, deparei-me com a citação de uma pesquisa contendo a descrição de um cidadão moldado às feições do tal narcisismo contemporâneo: a obsessão com a auto-imagem, amizades superficiais, respostas especialmente agressivas a supostas críticas feitas a ela, vidas guiadas por concepções altamente subjetivas de mundo, vaidade doentia, senso de superioridade moral e tendências exibicionistas grandiosas. Em suma, um ser naturalmente individualista.

O leitor não precisa se esforçar muito para encaixar vários de nossos atuais craques nas respectivas qualidades supracitadas. De bate-pronto, vem-me à cabeça a pérola de Luis Fabiano, quando indagado sobre seus jogadores preferidos da seleção de 58: "Não sei, nasci em 1980"... Alexandre Pato embarcou na mesma saída medíocre e engraçadinha ("Eu nem era nascido!"), e também o respeitado capitão de então, Lúcio; nenhum deles sabia o nome de um único jogador que ganhou a primeira Copa para o Brasil; nem de Pelé, Nilton Santos, Didi ou Mané.


Fato que me deixa bem pessimista quanto ao rendimento do Brasil na Copa de 2014, quando os jogadores sofrerão uma pressão descomunal, sendo candidatos a heróis da Pátria por livrar de vez o inconsciente nacional do maldito complexo de vira-latas que, neste caso (uma Copa em casa), ainda se sobrepõe à espetacular imagem de sucesso e orgulho que a seleção brasileira conquistou nos últimos 50 anos de disputas ludopédicas, mundo afora.

Será que os convocados terão tal condição psicológica, moral ou emocional? Será que algum deles terá porventura visto Didi carregando a bola, majestosamente calmo, após tomarmos o primeiro gol da Suécia, na final de 58? Receio que não, menos por oportunidade que por interesse, obviamente. Aliás, eles nem mesmo sabem que Didi foi um jogador, e não um comediante.

A falta de uma orientação adequada, pessoal, educacional e profissional, é um problema sério, seja para o atleta, seja para o cidadão (definição que deveria ser indissociável). Trata-se de um grave dano causado à formação de nossos jogadores, e que mina a base da educação por eles recebida; algo que nem a genialidade de um Neymar pode driblar. É preciso ter consciência. 


No que alguns apaziguadores serão instados a berrar: "Ah, mas Garrincha era um analfabeto beberrão, e mesmo assim só deu alegrias ao povo brasileiro!" Pois é, mas Garrincha não usava o Twitter, não era pospstar mundial e não tinha cada frase ou gesto registrado por uma câmera de televisão ou postado na internet. E estava longe de ter um comportamento narcisista. São, portanto, fenômenos incomparáveis. 

A minha sensação é que, determinado por esse aspecto social altamente individualista, o futebol brasileiro parece ter entrado num estágio de alienação tão radical que se assemelha à morte cerebral. Exagero?


Em 58 e 62, havia Didi; em 70, Gerson; em 82, o Doutor; e até em 2002, o Rivaldo se mostrou o pensador que arquitetava como operar os fenomenais Ronaldos. * Daqui a dois anos, será em Ganso que  apostaremos nossas fichas. Desde muito jovem, o rapaz com belo olhar de galã tem demonstrado inteligência, sensatez e amadurecimento precoce. Rezemos apenas para que as benzedeiras façam um bom trabalho em seu joelho, pois o tempo urge.

E mesmo que contemos com a lucidez e humildade do paraense  low profile, uma clara exceção nesse ambiente de celebridade que impera no "meio" - tão raso ideologicamente como alienado, culturalmente -, o problema persiste de modo amplo, geral e irrestrito. 


Empresários, dirigentes e especialistas se calam e até promovem o assunto. Familiares se satisfazem com as conquistas materiais. Torcedores apoiam e copiam cada vez mais o lado popstar dos atletas, sem lhes cobrar uma postura cidadã ou mesmo ética. A ignorância e o deslumbramento são entes dominantes no meio futebolístico... 


O futebol tornou-se o espelho de uma geração de narcisos que  reflete o comportamento de milhões de jovens "tchu-tchá-tchá", com seus penteados à la Neymar e muito, muito pouco a se contar.


E, para nosso terror,  como disse o Capita: “ninguém fala nada!”.


* Peço desculpas pela omissão proposital, mas não pude colocar os "Tetras" Dunga ou Zinho nesse time de notáveis, sob risco de tirar a credibilidade do artigo. E o Raí, com todas as condições de honrar essa família de pensadores, acabou perdendo a vaga pro Mazinho... 


foto de João Sassi
Varjão/DF

5 comentários:

  1. Um grande amigo que é músico e também professor de seu instrumento diz que incentiva em seus alunos a vaidade profissional, o desejo de se destacar, aparecer. Naturalmente, complementa ele, só se destaca mesmo quem tem, além de talento e técnica, disciplina e sensibilidade para saber tocar em grupo, conhecendo sua hora e a hora dos companheiros. Quando um grupo se entrosa, ganha experiência, esse conhecimento vem de modo natural.
    Com o esporte, o futebol em particular, a analogia é imediata. Todos os bons times do Brasil tiveram craques, mas jogando para o grupo e não querendo que o grupo jogue para ele (exemplo clássico de Ronaldinho em dias hodiernos). Com um Gérson, um Falcão, a comunicação vinha em palavras, muitas vezes um olhar também bastava. Hoje em dia, com o predomínio da imaturidade e o estrelismo - multiplicadas por contratos milionários, proibição de entrevistas fora dos "centros de imprensa" e assessores de imprensa distribuindo platitudes, a comunicação virou uma piada. Das ruins!

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    1. Disse tudo, Márcio.

      O caso que primeiro se destacou, creio eu, foi o Romário, quando chegou ao Fla em 95. O baixola era neoliberal até a alma, e só queria ser servido, e bola ni mim, e no deixa que eu sou foda, que eu resolvo e tal. Resultado, durante todo seu ciclo no Flamengo, a única conquista foi o Carioqueta de 96; no mais, só vexame nos Brasileirões da vida!

      Mas continuo achando que o problema estrutural está numa mentalidade cultural esvaziada pela falta de educação e orientação formais. Só quem enxerga o outro estará contribuindo com uma sociedade (e não somente com uma equipe) mais solidária e consciente.

      Abração,

      El D.T.

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  2. Aí DTJ², é pra rir ou pra chorar? O Adnet cutucando a ferida...
    http://www.youtube.com/watch?v=5vZ63hkjYdc&feature=related

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    1. PC,

      Se substituísse o Marcelo Adnet pelo Ronaldinho Gaúcho, que diferença haveria? O discurso é irretocável! "Brasil?!... Ah, o Brasil...".

      Abraço forte,

      El D.T

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  3. É João, essa histórias são boas demais. Sempre que me deparo com uma dessas, paro para ouvir.

    Abração,

    Arthur.

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