domingo, 28 de abril de 2013

Maracanã: chucrute com banana


O índio e a influência européia: intercâmbio cultural?


O alemão Uli Stielike, campeão da Euro1980, declarou o seguinte em relação ao processo de modernização pelo qual atravessa a Deutsche Fußball Liga: - Nos inspiramos em outros modelos, mas sempre preservando a nossa identidade.

Leio com atenção suas palavras, pois atenção é coisa que não se dispensa quando se trata do povo alemão. Já escutei em algum lugar o João Ubaldo Ribeiro dizer que “o alemão é um povo doidão, mas uma doideira alemã”. Ao que me constava, eram organizados, eficientes e perfeccionistas, ao passo que agora descobrimos nós, os desavisados, que estão um passo adiante. Nas palavras de Jürgen Klopp, técnico do Borussia Dortmund, “os alemães não sabiam que poderiam ser tão despreocupados, felizes e alegres”.

Há relativamente pouco tempo, coisa de uma década atrás, era quase inimaginável ver um jogador preto trajando o branco imponente da outrora seleção ariana. Hoje, no entanto, as novas gerações assistem a isso como se sempre houvesse sido assim. Trata-se, porém, de um desfecho emblemático aos pretensos ideais de “pureza étnica” que tanta vergonha causou ao povo alemão e à humanidade, coisa de meio-século atrás. Se verdadeira a afirmação de Darcy Ribeiro que a miscigenação brasileira nos preconiza como ‘o país do futuro’, então os alemães, sempre eficientes, já se tocaram disso e começaram a misturar sua gente. Já o brasileiro, velhaco que é, copia o alemão, à sua maneira, claro. Importamos a estética, importamos os custos e o “modelo”, mas deixamos nossa cultura de lado. Talvez porque esse papo de cultura seja coisa de país subdesenvolvido, nativo preguiçoso e vagabundo. Chique mesmo é copiar o colonizador.

Enquanto o alemão importa nossa morenice e desendurece sua cintura a cada geração, importamos conceitos comportamentais, econômicos e arquitetônicos, sempre à nossa moda. Enquanto eles enchem os estádios de ambiente familiar a preços módicos e futebol total, nós destruímos nossa memória erguendo inconseqüentemente templos de consumo destinados a uma nova e seleta categoria de torcedores.

Durante os últimos anos, os menos importantes dos torcedores – aqueles que se tornaram anacrônicos às pretensões empresariais de seus clubes – reclamaram e protestaram contra a forma como os estádios se modernizavam: marquises, dimensões históricas, anéis superiores, túneis, nomes (!), arquibancadas, e até traves e redes, em suma, toda a tradição, a história e a identidade dos estádios brasileiros foram impiedosamente postas abaixo, de modo que até mesmo a simples denominação foi alterada, pois de estádios passamos a ter de aceitar a onipresença do aburguesado conceito de “arenas multiuso”; centros de compras tão grandes que comportam, inclusive, um campo de futebol. Em meio ao jogo de bola e à paixão do torcedor interpôs-se o lucro como primazia, e a relação entre o campo e as arquibancadas, antes direta e informal, será doravante mediada por rituais de consumo automatizados.

Não faz muito (2005) e nos despedíamos da Geral, mero conceito de um espaço que, por si só, revelava a natureza e a universalidade da alma brasileira. Para, contudo, mostrar ao mundo o valor dessa nossa gente bronzeada, acabaram com o espaço por ela majoritária e historicamente ocupado. Foi-se a democracia étnica e social, acabou-se a mistura e a loucura geral... Agora o senhorio europeu podia até vir aqui, ver como sabemos nos comportar bem.

Mas ainda assim, restava muita gente, muito povo – essa gente insistente – ocupando os espaços públicos, atravancando o progresso da nação. Tinha até índio na parada! Melhor destruir a pôrra toda, pois não foi assim que espanhóis e portugueses conquistaram a América Latina, mais de 500 anos atrás? Deve ser um bom plano: - “Porrada nos índios e põe o resto abaixo!”, anunciou Cabral, que não o Pedro.

Sinhozinho Dotô Ricardo já tinha revelado, em tom diabólico, lá pelos idos dos anos 90, que se o Brasil quisesse um dia sediar novamente a Copa, só pondo abaixo o Maracanã... –, o que soou tão despropositado e bizarro aos ouvidos dos jurássicos torcedores de então que muito não se fez contra o impropério, senão desejar uma lenta e dolorosa morte ao seu autor, preferencialmente por empalamento. Teixeirowski apenas sorriu, esfregando sadicamente as mãos; sua vingança seria malígrina...

Então, assim, entre uma reforma e uma mentira, uma fila e um cambista, uma caceteada e um gás de pimenta nos olhos (que, sendo os alheios, é refresco para a nata carioca) os estádios foram todos postos abaixo. Uma canetada aqui e um aperto de mão ali e pronto, o Brasil está no mesmo patamar que o mundo desenvolvido! A custos astrolábicos, obtivemos nosso passaporte para adentrar a civilização com bola e tudo, metendo cafuzas e fulecos por sob as caxirolas alheias. As mulatas sambando e os contumazes shows artificiais de breguice latina vêm a reboque, como se quem os organizasse não fosse um profissional brasileiro, e sim o dono do bordel freqüentado por Mr. Teixeiraaaaaaa, na Flórida.

Que a Copa não era ‘do’ Brasil, e sim da FIFA, já sabíamos, mas que a Copa fosse ‘no’, Brasil, quanto a isso não tínhamos dúvidas, o que ao menos nos servia como alento e consolo. Mas quem se aventurar (e conseguir) assistir a um jogo da Copa, poderá pensar que se está em um lugar qualquer (Guaporé?), que não o Brasil. O primeiro desafio será descobrir o estádio, já que, por dentro, todos parecem exatamente iguais. À primeira vista, não consegui distinguir o Castelão da Fonte Nova ou o Mineirão do Maracanã. São todos insípidos, inodoros e incolores, e seguem o mesmo e monótono padrão.

Olhando à sua volta, o infeliz logo cedo irá atinar para a frieza do local e para o esquema de segurança de primeiro mundo, com homens uniformizados e roboticamente disciplinados, e ficará impressionado com o sistema de luzes e de som, com a qualidade dos telões e do gramado (será mesmo?), bem como com a limpeza das áreas de acesso e com o asseio dos banheiros, e também com a pequena distância do seu assento em relação ao campo.

Por outro lado, não haverá mais tanta gente queimada de sol ao seu lado, nem acima ou abaixo. Não haverá tantos desdentados sorrindo e cuspindo perdigotos sobre sua cabeça. Nem suor, vibração, saco de mijo ou excesso de emoção. Nada próximo de folclore ou tradição. Não vai encontrar acarajé ou feijão-tropeiro, mas certamente poderá saborear um Bic Mac. Notará decerto que o comportamento do torcedor não é mais espontâneo, mas padronizado, observado e monitorado. É todo mundo comportado.

Isso talvez o deixe satisfeito e orgulhoso de ser brasileiro e “civilizado”, ainda que, nesse caso, o gentílico já não carregue a mesma essência e significado dos tempos de Garrincha, Pelé ou Zico, e não expresse mais nossa identidade – aquilo que nos diferenciava e fazia de nós um povo original, invejado e admirado pelos demais. Mas isso é coisa de gente nostálgica, dos tais saudosistas; daquela gente ultrapassada que não se esquece do tempo em que éramos apenas despreocupados, felizes e alegres...


foto: joão sassi
sobre grafite de rua SP
autor desconhecido

7 comentários:

  1. Sensacional! Comento com arrepios! Compartilho da indignação pelo que está sendo feito nesse processo de aculturação autoimposta, onde somos nós nossos próprios opressores. Que saiamos desse estado de anestesiamento. Amanhã há de ser um dia melhor, apesar de Cabral, Paes, Eike, Dilma, Ricardo, José e tantos outros. Somos mais.

    Abraços,
    jogadadefeito.blogspot.com

    ResponderExcluir
  2. É isso, Sohan, "apesar de você(s), amanhã há de ser outro dia...".

    De fato, a situação está insustentável! Perdeu-se o senso do ridículo.

    Um abraço,

    El D.T.

    ResponderExcluir
  3. Muito bom, João. O Brasil sem Geral, sem bandeira, sem charanga, é só imitação barata do futebol de "primeiro mundo".

    Maristela

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Imitação de quinta catiguria, desprovida de alma e tradição, Maristela. Que diria Nelson Rodrigues? A Charanga do Jaime, que nunca fez mal qualquer, senão o contrário... Quanta brutalidade!

      "Flamengo joga, amanhã, eu vou pra lá!
      Quero ouvir a charanga do Jaime tocar..."

      Excluir
  4. A parte que transcrevo, me fez lembrar, com muito carinho, quando frequentava o Estádio Serra Dourada, em Goiânia, com meu saudoso Pai: "Não haverá tantos desdentados sorrindo e cuspindo perdigotos sobre sua cabeça. Nem suor, vibração, saco de mijo ou excesso de emoção"

    Creio que o vídeo que consta no link retrata um pouco de suas observações: http://www.youtube.com/watch?v=NGU2iR4HQCU

    Abs



    ResponderExcluir
  5. Tempos bons, "despreocupados, felizes e alegres" Maltrapa que intimidade lúdica e eficaz você tem com as palavras. Bravo!!!! Magnífico texto.

    ResponderExcluir
  6. Valeu, Flávio! Saravá, Vítor!

    O Maltrapa

    ResponderExcluir