O
alemão Uli Stielike, campeão da Euro1980, declarou o seguinte em relação ao
processo de modernização pelo qual atravessa a Deutsche Fußball Liga: - Nos inspiramos em outros modelos, mas
sempre preservando a nossa identidade.
Leio
com atenção suas palavras, pois atenção é coisa que não se dispensa quando se
trata do povo alemão. Já escutei em algum lugar o João Ubaldo Ribeiro dizer que
“o alemão é um povo doidão, mas uma doideira alemã”. Ao que me constava, eram
organizados, eficientes e perfeccionistas, ao passo que agora descobrimos nós,
os desavisados, que estão um passo adiante. Nas palavras de Jürgen Klopp, técnico
do Borussia Dortmund, “os alemães não sabiam que poderiam ser tão despreocupados,
felizes e alegres”.
Há
relativamente pouco tempo, coisa de uma década atrás, era quase inimaginável
ver um jogador preto trajando o branco imponente da outrora seleção ariana. Hoje,
no entanto, as novas gerações assistem a isso como se sempre houvesse sido
assim. Trata-se, porém, de um desfecho emblemático aos pretensos ideais de “pureza
étnica” que tanta vergonha causou ao povo alemão e à humanidade, coisa de meio-século
atrás. Se verdadeira a afirmação de Darcy Ribeiro que a miscigenação brasileira
nos preconiza como ‘o país do futuro’, então os alemães, sempre eficientes, já
se tocaram disso e começaram a misturar sua gente. Já o brasileiro, velhaco que
é, copia o alemão, à sua maneira, claro. Importamos a estética,
importamos os custos e o “modelo”, mas deixamos nossa cultura de lado. Talvez porque
esse papo de cultura seja coisa de país subdesenvolvido, nativo
preguiçoso e vagabundo. Chique mesmo é copiar o colonizador.
Enquanto
o alemão importa nossa morenice e desendurece sua cintura a cada geração,
importamos conceitos comportamentais, econômicos e arquitetônicos, sempre à
nossa moda. Enquanto eles enchem os estádios de ambiente familiar a preços
módicos e futebol total, nós destruímos nossa memória erguendo inconseqüentemente
templos de consumo destinados a uma nova e seleta categoria de torcedores.
Durante
os últimos anos, os menos importantes dos torcedores – aqueles que se tornaram
anacrônicos às pretensões empresariais de seus clubes – reclamaram e
protestaram contra a forma como os estádios se modernizavam: marquises,
dimensões históricas, anéis superiores, túneis, nomes (!), arquibancadas, e até
traves e redes, em suma, toda a tradição, a história e a identidade dos estádios
brasileiros foram impiedosamente postas abaixo, de modo que até mesmo a simples
denominação foi alterada, pois de estádios passamos a ter de aceitar a
onipresença do aburguesado conceito de “arenas multiuso”; centros de compras
tão grandes que comportam, inclusive, um campo de futebol. Em meio ao jogo de bola
e à paixão do torcedor interpôs-se o lucro como primazia, e a relação entre o
campo e as arquibancadas, antes direta e informal, será doravante mediada por
rituais de consumo automatizados.
Não
faz muito (2005) e nos despedíamos da Geral,
mero conceito de um espaço que, por si só, revelava a natureza e a
universalidade da alma brasileira. Para, contudo, mostrar ao mundo o valor
dessa nossa gente bronzeada, acabaram com o espaço por ela majoritária e
historicamente ocupado. Foi-se a democracia étnica e social, acabou-se a
mistura e a loucura geral... Agora o senhorio europeu podia até vir aqui, ver
como sabemos nos comportar bem.
Mas
ainda assim, restava muita gente, muito povo – essa gente insistente – ocupando
os espaços públicos, atravancando o progresso da nação. Tinha até índio na
parada! Melhor destruir a pôrra toda, pois não foi assim que espanhóis e
portugueses conquistaram a América Latina, mais de 500 anos atrás? Deve ser um
bom plano: - “Porrada nos índios e põe o resto abaixo!”, anunciou Cabral, que não
o Pedro.
Sinhozinho
Dotô Ricardo já tinha revelado, em tom diabólico, lá pelos idos dos anos 90,
que se o Brasil quisesse um dia sediar novamente a Copa, só pondo abaixo o
Maracanã... –, o que soou tão despropositado e bizarro aos ouvidos dos
jurássicos torcedores de então que muito não se fez contra o impropério, senão
desejar uma lenta e dolorosa morte ao seu autor, preferencialmente por empalamento.
Teixeirowski apenas sorriu, esfregando sadicamente as mãos; sua vingança seria
malígrina...
Então,
assim, entre uma reforma e uma mentira, uma fila e um cambista, uma caceteada e
um gás de pimenta nos olhos (que, sendo os alheios, é refresco para a nata
carioca) os estádios foram todos postos abaixo. Uma canetada aqui e um aperto
de mão ali e pronto, o Brasil está no mesmo patamar que o mundo desenvolvido! A
custos astrolábicos, obtivemos nosso passaporte para adentrar a civilização com
bola e tudo, metendo cafuzas e fulecos por sob as caxirolas alheias. As
mulatas sambando e os contumazes shows artificiais de breguice latina vêm a
reboque, como se quem os organizasse não fosse um profissional brasileiro, e
sim o dono do bordel freqüentado por Mr. Teixeiraaaaaaa, na Flórida.
Que
a Copa não era ‘do’ Brasil, e sim da FIFA, já sabíamos, mas que a Copa fosse ‘no’,
Brasil, quanto a isso não tínhamos dúvidas, o que ao menos nos servia como
alento e consolo. Mas quem se aventurar (e conseguir) assistir a um jogo da
Copa, poderá pensar que se está em um lugar qualquer (Guaporé?), que não o
Brasil. O primeiro desafio será descobrir o estádio, já que, por dentro, todos
parecem exatamente iguais. À primeira vista, não consegui distinguir o Castelão
da Fonte Nova ou o Mineirão do Maracanã. São todos insípidos, inodoros e
incolores, e seguem o mesmo e monótono padrão.
Olhando
à sua volta, o infeliz logo cedo irá atinar para a frieza do local e para o esquema
de segurança de primeiro mundo, com homens uniformizados e roboticamente
disciplinados, e ficará impressionado com o sistema de luzes e de som, com a
qualidade dos telões e do gramado (será mesmo?), bem como com a limpeza das
áreas de acesso e com o asseio dos banheiros, e também com a pequena distância do
seu assento em relação ao campo.
Por
outro lado, não haverá mais tanta gente queimada de sol ao seu lado, nem acima
ou abaixo. Não haverá tantos desdentados sorrindo e cuspindo perdigotos sobre
sua cabeça. Nem suor, vibração, saco de mijo ou excesso de emoção. Nada próximo
de folclore ou tradição. Não vai encontrar acarajé ou feijão-tropeiro, mas
certamente poderá saborear um Bic Mac. Notará decerto que o comportamento do
torcedor não é mais espontâneo, mas padronizado, observado e monitorado. É todo
mundo comportado.
Isso
talvez o deixe satisfeito e orgulhoso de ser brasileiro e “civilizado”, ainda
que, nesse caso, o gentílico já não carregue a mesma essência e significado dos
tempos de Garrincha, Pelé ou Zico, e não expresse mais nossa identidade –
aquilo que nos diferenciava e fazia de nós um povo original, invejado e
admirado pelos demais. Mas isso é coisa de gente nostálgica, dos tais saudosistas;
daquela gente ultrapassada que não se esquece do tempo em que éramos apenas despreocupados,
felizes e alegres...
foto: joão sassi
sobre grafite de rua SP
autor desconhecido
Sensacional! Comento com arrepios! Compartilho da indignação pelo que está sendo feito nesse processo de aculturação autoimposta, onde somos nós nossos próprios opressores. Que saiamos desse estado de anestesiamento. Amanhã há de ser um dia melhor, apesar de Cabral, Paes, Eike, Dilma, Ricardo, José e tantos outros. Somos mais.
ResponderExcluirAbraços,
jogadadefeito.blogspot.com
É isso, Sohan, "apesar de você(s), amanhã há de ser outro dia...".
ResponderExcluirDe fato, a situação está insustentável! Perdeu-se o senso do ridículo.
Um abraço,
El D.T.
Muito bom, João. O Brasil sem Geral, sem bandeira, sem charanga, é só imitação barata do futebol de "primeiro mundo".
ResponderExcluirMaristela
Imitação de quinta catiguria, desprovida de alma e tradição, Maristela. Que diria Nelson Rodrigues? A Charanga do Jaime, que nunca fez mal qualquer, senão o contrário... Quanta brutalidade!
Excluir"Flamengo joga, amanhã, eu vou pra lá!
Quero ouvir a charanga do Jaime tocar..."
A parte que transcrevo, me fez lembrar, com muito carinho, quando frequentava o Estádio Serra Dourada, em Goiânia, com meu saudoso Pai: "Não haverá tantos desdentados sorrindo e cuspindo perdigotos sobre sua cabeça. Nem suor, vibração, saco de mijo ou excesso de emoção"
ResponderExcluirCreio que o vídeo que consta no link retrata um pouco de suas observações: http://www.youtube.com/watch?v=NGU2iR4HQCU
Abs
Tempos bons, "despreocupados, felizes e alegres" Maltrapa que intimidade lúdica e eficaz você tem com as palavras. Bravo!!!! Magnífico texto.
ResponderExcluirValeu, Flávio! Saravá, Vítor!
ResponderExcluirO Maltrapa